MENINAS EM MOÇAMBIQUE

O QUE É SER UMA MENINA EM MOÇAMBIQUE?

Faz parte da cultura, que as meninas, após uma certa idade, variando entre 7, 8, 9 anos em diante, recebem a tarefa de cuidar do irmão mais novo.  Outras nessa idade, quando muito pobres, trabalham de babá (ou “macaiaia” ), cuidando dos pequenos de outras famílias. Normalmente essas “macaiaias” não estudam, recebem bem pouco ou nada, e são tratadas como inferiores - e isso pelo seu próprio povo.
Duas meninas me chamaram a atenção e elas representam a maioria delas.
A primeira, que não tenho o nome, de aproximadamente 8 anos de idade, da cidade de Nampula. Eu estava ali ajudando num programa de Escola Dominical numa igreja. Após a mensagem, foi oferecido um copo de suco e um pedaço de doce. Foi uma grande festa, pois para as crianças, que não são mal-acostumadas, é um grande presente. Ansiosas, elas se apertaram na fila para receber a sua porção. Observei uma menina que, desesperada, tentava furar a fila, estendendo as mãos. Quando finalmente recebeu o doce e o suco, correu até uma menina menor, que estava sentada no chão. Era sua irmã que veio carregando nas costas (amarrada com uma pano nas costas – é comum). Era aleijada e parecia ser portadora de várias outras deficiências: audição, visão, motora...sabe-se o que mais. A menina se sentou ao lado dela, puxou-a em seu colo, e lhe deu o suco, devagar para não engasgar, gota por gota. De vez em quando olhava para a fila da distribuição, certificando-se que sobraria algo para ela própria. Após saciar a irmã, ela correu para pegar o seu quinhão. Que alívio. Sobrou. Sim, eu vi aquela cena e também me preocupei que ela tivesse o seu pedaço de bolo e suco. Quando o programa acabou, ela amarrou sua irmã nas costas, que era quase do tamanho dela e deveria pesar muito, e voltou para casa. Eu me perguntei. Como os pais permitem isso? Provavelmente eles também foram criados assim.

A outra menina, de 9 anos de idade, é da Beira. Ela veio ao meu programa que fiz na sala da garagem da casa da missionária Maura. Costumo fazer programas ali todas as vezes que vou à Moçambique. A sala encheu em poucos segundos. As crianças se apertavam nas carteiras. Após a história, distribui papel e tinta para uma atividade. É sempre uma grande alegria para as crianças poderem pintar. Quase como uma festa. Até o papel ofício é um luxo. Bem
grudada à parede estava uma das meninas com seu irmãzinho (havia outras), com um rosto lindo e alegre. O irmãozinho era ainda um bebê, que dormia no seu colo, amarrado no pano. Na hora da atividade, porém, ele começou a chorar. Parecia estar com fome. A menina ficou entre o seu divertimento e a responsabilidade. Ela não conseguia fazer sua atividade tentando acalmar o bebê. Mas sem sucesso. Sugeri a ela voltar para casa e levar o bebê para mamar. Ela foi. Após o programa distribuí uma lembrancinha a cada um, lembrando do “Dia da Criança Moçambicana”. No dia seguinte, lá estava ela no programa da tarde na garagem. Logo veio a meu encontro pedindo a lembrancinha. Eu não tinha mais nenhuma. Havia acabado tudo. É impossível fazer as contas de quantas lembrancinhas você vai precisar, pois o número de crianças tende a crescer durante o programa. É incrível como se ajuntam crianças em poucos segundos. Fiquei triste em dar essa notícia à menina. Naquele dia ela ficou somente alguns minutos, pois o irmãozinho começou a chorar. Ela foi embora novamente e não veio mais. Numa tarde, antes do anoitecer, estava fechando a porta de minha casa quando a vi na rua, parada, olhando em direção à casa. Eu fechei a porta simplesmente, pois estava muito cansada. Não tive paz naquela noite. Aquele olhar não me deixou. Ela era uma das muitas meninas que não podem se divertir à vontade por conta da grande responsabilidade que lhe é imposta. Nem mesmo o nome dela eu sabia. Meu tempo em Moçambique estava no fim. Naquela manhã, do último dia antes da partida orei pedindo que Deus me desse uma chance de encontrar essa menina. Deus ouviu minha oração. Eu a encontrei na rua, indo para casa com um saco de pão na mão, sem o irmão nas costas. Eu parei e conversei com ela. Perguntei seu nome. Com aquela beleza no rosto e alegria ela respondeu: “Neima”. Então a levei à minha casa, conversamos mais um pouco, dei guloseimas que tinha na geladeira e enquanto isso já havia arranjado uma lembrancinha. Foi reconfortante esse pequeno encontro. Talvez mais para mim do que para ela.
Essas meninas foram um exemplo de vida para mim.
Enquanto isso, milhares de meninas assim estão com os irmãos mais novos pendurados nas costas. Não vejo isso como um mal, é um aprendizado nobre. Porém, o que me comove é justamente o fato de elas serem “podadas” na sua infância, tendo que trocar a diversão por uma responsabilidade que cabe aos mais velhos. Que muitas vezes se torna um jugo na vida dessas crianças.        


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